«SE CALHAR QUEBRÁMOS O MITO DE QUE SÓ ESTÁ AO ALCANCE DE PROFISSIONAIS»
Texto: Marcelo Neves
Foto: Dream Rally Team
Sérgio Castro e Pedro Ribeiro, amigos de infância, naturais de Santa Maria da Feira, partiram à descoberta de uma parte da África Saariana à conta de uma paixão comum: as motos e rallies. No meio duma conversa normal, decidiram inscrever-se no Rally-Raid Africa Eco-Race Dakar, realizado entre 28 de Dezembro 2014 e 11 de Janeiro 2015. Lançaram-se em busca de apoios e logo apelidaram-nos de “malucos”, mais ainda quando, feitas as contas às verbas reunidas, concluíram que não era possível levar uma equipa mecânica. “Tudo bem, vamos só os dois”, pensaram e mais depressa fizeram! Valeu-lhes a ajuda prestada pela equipa liderada por Elisabete Jacinto. Um espírito de camaradagem que lhes deu um enorme impulso anímico para seguirem até à meta final. Isso e a vontade férrea que tinham em mostrar que dois amadores poderiam ter sucesso, criando um novo paradigma, incitando novos exemplos de audácia. De regresso às suas rotinas (sim, porque “a nossa vida não são as motos!”), felizes embora cansados, mais magros, com algumas nódoas, trouxeram troféus, recordações e muitas histórias para contar. E o desejo de voltar a repetir, mas não para já….!
De quem foi a ideia de dois amadores partirem assim, com escassos apoios, sem equipa mecânica, sem ninguém como respaldo, para uma aventura destas no meio de África, muitas vezes no meio do nada a não ser terra e areia?
PR – Sempre fomos amantes de motos, desde a adolescência acompanhamos os rallies tipo Paris Dakar e mais recente o Eco-Race, e no início do ano passado começou a ganhar forma o sonho de participarmos numa dessas provas. A ideia pioneira foi do Sérgio, que me perguntou, “então, Pedro, vamos fazer o Africa Eco-Race”? Eu respondi, “sim, vamos, mas para isso temos de arranjar patrocínios, apoios, pois não temos capacidade financeira para um empreendimento desses”. Foi então que partimos à procura de apoios, fomos expondo o nosso projecto, colhendo alguma aceitação e as coisas foram se desenrolando.
E as vossas famílias, como reagiram quando confrontadas com esse projecto?
PR – Ganhámos coragem e apresentamos a ideia. Ao princípio foi complicado convencê-los de que íamos mesmo fazer aquilo. Para mim foi um pouco mais fácil, sou solteiro e sem filhos, ao passo que o Sérgio tem esposa e uma filha pequena. Mas foram mil e uma perguntas, como é normal. Mas são pessoas que gostam de nós e apoiam-nos naquilo que nós gostamos de fazer e não foi assim nada problemático.
Mas irem sozinhos, sem assistência mecânica, para uma prova com tamanha dureza, não foi demasiado arriscado?
PR – Ao princípio pensámos em dispensar essa parte, mas começámos a aperceber-nos que da dimensão da prova e ainda tentámos reunir apoios no sentido de podermos levar uma equipa mecânica, mas isso traduzir-se-ia em mais 15 mil euros de gastos. A verdade é que chegámos a Dezembro e não tínhamos verba suficiente, pelo que tivemos de ir sozinhos. Já tínhamos dado os passos principais, treinámos durante meses para isso e por esse facto não íamos desistir no momento final.
Vocês foram os únicos participantes nessas condições, sem levar assistência?
SC – Sem assistência mecânica, sim. A maioria dos concorrentes são ex-pilotos de rallies, que se juntam, quase sempre os mesmos, para realizar aquela aventura. Mas nem todos são profissionais, a maioria são entusiastas, como nós, só que com uma vasta experiência em termos de rallies como aquele, no meio do deserto.
PR – Estávamos mesmo completamente fora do baralho! (risos)
Apercebiam-se que os outros poderiam pensar: “Que andam estes dois malucos aqui a fazer”?
SC – Eles próprios diziam: “Vocês são doidos!” Todos os dias quando terminávamos uma etapa e no dia seguinte lá estávamos prontos para arrancar de novo, todos nos batiam palmas! Eles diziam: “Ainda aqui estão? Incrível, vocês são completamente ‘avariados’”! (risos)
Esses comentários, no fundo, ainda vos dava mais alento para continuar!
SC – Sem dúvida! Ainda tínhamos mais “pica” para tentar chegar ao fim da prova.
A certa altura também foram se habituando à vossa presença e ganhando algum respeito, obviamente…
PR – Fomos muito acarinhados. Quando chegávamos, já de noite, eles todos já limpinhos, bem vestidinhos, a jantar, viam-nos chegar e perguntavam sempre “então, como correu? Estão prontos para amanhã?” Foram todos espectaculares, dentro daquele “antigo espírito de África”, segundo nos relataram os mais experientes. Algo que por sinal já se esbateu no “Paris-Dakar” realizado em terras sul-americanas. Aquele espírito de camaradagem, de entreajuda, de pessoas que estão ali porque amam aquilo, amam a aventura e desfrutam ao máximo daquela experiência.
SC – Por exemplo, se vissem alguém caído, paravam logo, perguntavam se estava tudo bem, se precisávamos de ajuda, nem que fosse o primeiro carro da sua categoria a passar ali. E não saíam dali enquanto não tivessem a certeza de que estávamos OK para prosseguir andamento. Diz bem do espírito da prova. Até por isso, se eu tinha algum desejo de fazer um dia um “Paris-Dakar” oficial, já perdi. Agora, só se fosse outra “Eco-Race”!
Havia mais participantes portugueses na prova, como por exemplo a Elisabete Jacinto. Eles não vos deram uma “mãozinha” quando era necessário?
PR – Sim, mas repare: estamos a falar de equipas que têm um objectivo desportivo muito claro e muito sério, têm objectivos a cumprir perante os patrocinadores e aquilo é a vida deles. Não podem, a meio de uma prova, estar a dispensar atenção ou a perder o tempo deles connosco, só por sermos portugueses.
SC – Mas tudo o que nós precisássemos eles tentavam facultar-nos ajuda! Por exemplo, nós chegávamos quase sempre tarde e fora de horas, noite escura e eles faziam um esforço e ficavam acordados com o gerador ligado para facultar-nos luz para podermos tratar das motos… nós não podíamos pedir mais do que aquilo pois eles estavam ali empenhados no trabalho deles e no objectivo de ganharem. Nós não, estávamos ali descontraídos, a desfrutar do nosso sonho! Soubemos desde sempre qual era a nossa posição no meio daquilo tudo! Dentro dos possíveis eles ajudaram.
No final desta aventura toda, pensam em repetir o feito?
PR – Não tão cedo, certamente, até porque o investimento exigido é muito grande, tivemos apoios mas uma boa parte teve sair do nosso bolso. Por termos chegado ao fim da prova e dado alguma credibilidade ao nosso projecto, se calhar conseguimos provar que temos capacidade para realizar uma prova destas e agora com mais experiência e conhecimentos do terreno, até obter melhor resultado. Talvez consigamos até mais apoios, mas por ora não pensamos nisso. Foi muito bom, uma experiência fantástica, mas foi extremamente duro! Nós chegámos cá no passado dia 13, ainda!
Ainda estão na “ressaca” da prova?
PR – Eu ainda ando cheio de sono e de fome, também! (risos) Nós perdemos muito peso e só nos apercebemos do cansaço quando chegámos a Portugal e começámos a descansar. Se bem que “descansar” não é o termo certo, porque na realidade ainda não parámos. A nossa vida não são as motos, nós temos as nossas profissões, nosso trabalho. O Sérgio, por exemplo, logo no dia 13 veio trabalhar, eu fui no dia seguinte e até hoje, praticamente, ainda não tive dois ou três dias em casa para restabelecer. Mas dia após dia vamos nos sentido melhor. Eu ainda estou a recuperar de um joelho, porque tive uma queda no último dia da prova, na ligação de Saint Louis [Mauritânia] a Dakar. Essa etapa foi realizada durante quase toda a noite e na alvorada do dia 11, numa curva apanhei sem contar com uma récua de burros e para não me projectar contra eles acabei por cair e ainda me sinto um pouco dorido. Mas um dia, será para repetir uma aventura, mas ao contrário, ou seja, começar por uma prova menos longa e menos exigente, como o Rally de Marrocos ou o Helas Rally Raid da Grécia…
Têm noção de que a partir do vosso exemplo, se calhar mais alguns “malucos das motos” vão querer igualmente aventurar-se?
PR – Por acaso, consta-se que já havia duas pré-inscrições para a edição do próximo ano de dois concorrentes aqui da zona de Águeda. Não sei quem são, nem que experiência ou palmarés terão, mas contaram-nos que a nossa aventura terá sido um incentivo para que eles se decidissem avançar com esse projecto até Dakar.
Vocês sentem algum orgulho… porque no fundo foram pioneiros, embarcando numa aventura sem qualquer experiência prévia, sem assistência técnica/mecânica nenhuma…?
PR – No início as pessoas diziam que era impossível concluirmos as etapas todas da prova até ao fim, isso só estaria ao alcance de pilotos profissionais, pessoas com imensa experiência. Se calhar quebrámos esse mito. Não significa que doravante qualquer pessoa que vá para lá nas mesmas condições que nós fomos vá chegar ao fim. Cada etapa concluída era para nós uma vitória! Vivíamos um dia de cada vez e foi muito duro!